Destralhar sem fim à vista...

.
Antes de tudo o resto que hoje me traz aqui, quero partilhar convosco a fotografia acima. Tirei-a em Óbidos há cerca de uma semana atrás. Era já fim de tarde. Tenho uma relação de profunda admiração com as bungavílias, fazem-me muito bem aos olhos e esta imagem em particular transmite-me bem-estar e simboliza o final de uma etapa e o começo de uma outra, que ao dia de hoje também já terminou, que foram os nossos descansados e muito vividos oito dias de férias que se seguiram ao que agora vos conto.
Nos primeiros doze dias de Agosto estive no sul, mas não propriamente de férias. É o segundo ano consecutivo que vemos o nosso plano de férias furado. Causa? os problemas de saúde da ala mais velha da família que clamam por apoio nosso. Lá fomos. Quando regressei a casa, numa espécie de impulso, vim para o computador e despejei as palavras que a seguir podem ler. Só agora as publico porque após as ter escrito pensei várias vezes se traria o assunto para aqui. Não é Lado B. Não descontrai, nem faz bem aos olhos. É um assunto sério, mas acabei por decidir fazê-lo porque, além de que para mim funciona como uma forma de limpar e organizar os pensamentos e também a carga que senti (e sinto) ao ter de lidar com o assunto, pode também servir de alerta para quem esteja a ler. Aquilo de que hoje vos falo já vi em programas da tv, mas nunca me passou pela cabeça que um dia teria de lidar directamente com um caso. Consigo perceber que aquilo com que estou a lidar não é um caso dos mais complicados, já vi muito, mesmo muito pior na tv, mas também tenho a sensação de que se por acaso este familiar não tivesse sofrido o avc, que nos levou a ter de entrar em sua casa, aquilo com que um dia mais tarde nos depararíamos poderia vir a ser tão caótico que não haveria ponta por onde se pegasse.
Cá vai, então. Já alguma vez ouviram falar de acumuladores compulsivos? são pessoas que sofrem de uma doença originada por factores de ordem psíquica. Têm por hábito e necessidade a acumulação compulsiva e desordenada de "bens". Acumulam grandes quantidades de objectos por toda a casa, até chegar ao ponto de lhes ser praticamente impossível circular pelo espaço. São incapazes de se desfazer de um alfinete que seja, com a certeza absoluta de que tudo o que compram e acumulam lhes faz muita falta. Pois muito bem, saiu-me um acumulador compulsivo na rifa! Um familiar nosso, já com uma certa idade, sofreu recentemente um avc e foi hospitalizado. Pediram-nos alguns documentos da pessoa e decidimos ir a sua casa para levantá-los. Lá chegados, a expressão procurar uma agulha num palheiro tornou-se extremamente real. Em Março deste ano já tinha estado em casa deste familiar e na altura deparei-me já com uma desorganização fora do normal, mas não ainda tão avançada. Conversei com a pessoa, adverti-a para o perigo de uma evolução menos interessante e tentei fazer-lhe ver a necessidade urgente de procurar ajuda e acompanhamento. Na altura arrumei-lhe o quarto, restituindo-lhe a cama que já não estava a conseguir usar, e fi-lo na sua presença, sendo que não me foi permitido doar uma peça de roupa que fosse, arranjou justificação para cada uma delas, tudo lhe fazia falta...
.
Esta não é uma publicação para um antes e depois, mas não descasaremos enquanto não conseguirmos restituir novamente a casa arrumada e limpa ao nosso familiar. Após a primeira intervenção conseguimos doar cerca de 20 sacos de roupa, com capacidade para 50 litros cada, também nos despachámos de outros tantos cheios de lixo e reciclagem. Separámos centenas de peças de roupa, por tipo e material (roupa de rua, de dormir, interior, Verão, Inverno, algodão, lãs, etc) Contabilizei dezenas de tudo, o suficiente para criar um guarda-roupa completo para pelo menos outras dez pessoas. Com as loiças e roupa de casa, o mesmo, suficientes para rechear mais dez casas. No que respeita a mercearias ou comida no frigorífico, tudo a abarrotar e tudo fora de prazo. Enfim, um mar de confusão e desorganização. Bom, isto está muito distante da grande temática dos novos tempos traduzida pelo verbo "destralhar". Marie Kondo, onde estás??? preciso aqui de uma ajudinha... mas num caso destes nem ela nos pode valer. Bom, se calhar não é bem assim, talvez depois de despacharmos mais 40 sacos de tralha e conseguirmos começar a abrir gavetas e portas de armários, talvez nessa altura consigamos começar a pôr em prática alguns ensinamentos da senhora, bastante proveitosos por sinal. A questão é que isto não é um jogo de diferenças entre minimalismo e casa desarrumada, cheia de tralha e informação. Nem sequer é a diferença entre ser organizado ou ser desorganizado. Isto é sobre pessoas que deixam de viver a realidade, que entram num mundo de isolamento, numa depressão profunda que os faz esquecer dos dias em que foram felizes e da sua casa como porto seguro e lugar de conforto. São pessoas que sofrem muito e sozinhas, mesmo não estando, na maioria dos casos são os próprios que se isolam e quando tentamos "entrar" para os ajudar a sair da situação, a negação aparece para reinar o discurso. Não é fácil de detectar e quando se detecta, por norma, o problema já está instalado e em estado avançado. É um comportamento estranho, difícil de gerir, porque mesmo assentindo ao seu problema, como aconteceu com o nosso familiar, o facto é que a pessoa não tem força anímica para sair do fosso. Sentem-se mal com o que fazem mas fazem-no para não entrar em stress e ansiedade constantes. É muito contraditório, sentem-se infelizes por viverem num ambiente intoxicado pela desorganização, atolados em tralha, mas, para eles, a solução passa por sair à rua e fazer mais uma compra para se sentirem melhor e por momentos conseguem mesmo sentir uma espécie de felicidade.
A acumulação compulsiva foi considerada uma doença muito recentemente, apenas em 2013. Dizem os entendidos que começa a manifestar-se desde a infância, sendo que se agrava com a idade. De facto, se eu fizer um exercício de memória e voltar à minha adolescência, recordo-me de presenciar este familiar em momentos de grandes compras, de renovações constantes ou na compra de objectos caros que não serviam para nada, a não ser para acumular pó. Lá está, já na altura a pessoa sentia  uma satisfação plena por possuir determinados objectos. Claro que não havia consciência, nem nossa, nem da pessoa, sobre este problema, apenas dizíamos que era uma espécie de consumidor compulsivo, mas nada que nos levasse a pensar que um dia podia dar origem ao que deu, até porque a pessoa, embora de casa cheia, sempre teve tudo organizado e limpo. Conseguem imaginar o que é nunca, mas mesmo nunca, se desfazerem de nada, de apenas acumularem tudo o que ao longo da vida levam para casa, sem excepção? exacto, o que para nós representa o caos, para as pessoas que sofrem de acumulação compulsiva é modo de vida: compram para sentir conforto, chegam a casa atiram o que compraram para o molho de tralha, porque o que realmente lhes dá a sensação de felicidade é o acto da compra e não propriamente o que compram (encontrámos muitas peças de roupa e outro tipo de objectos ainda com as etiquetas e dentro dos sacos das lojas). Com o passar do tempo, olham para a casa e começam a vê-la como sua inimiga, por estar desorganizada, por não ter conforto. Então o que fazem? incapazes de dar a volta à situação, saem à rua e voltam a comprar "coisas" para se consolarem, regressam a casa, atiram ao molho e assim sucessivamente. É uma espiral sem fim à vista. Ah, sim, e entretanto o dinheiro é todo estoirado, claro.
Posto isto, depois de ter passado dias e dias metida na casa de um acumulador a arrumar e a despachar tralhice, quando entrei na minha casa achei-a perfeita. Não sou minimalista, nem nada que se pareça, contudo organização faz-me tanta falta como o pão para a boca. Mas depois daquela primeira dose garanto-vos que o meu fraco sentido minimalista ficou muito mais apurado.
Daqui a umas semanas vamos voltar a descer para darmos início à segunda fase de destralhanço. Na primeira, apesar de termos a noção de que nos despachámos de muuuuita tralha, o certo é que após todo o nosso trabalho olhámos à volta e tivemos a sensação de que quase nada tinha sido feito. É normal, aquilo é demasiado, é excessivo. Esperamos que da próxima vez possamos ficar com a sensação de que a casa pode voltar à normalidade e no final da tarefa poder sentir-me tal Marie Kondo, com a sua missão cumprida.
Quanto ao familiar, está a ser muito bem cuidado e tratado e, felizmente, tem tido grandes melhorias nestes últimos dias.
Resta-me agradecer-vos a amabilidade de me lerem, mesmo quando escrevo muito e os assuntos não fazem bem aos olhos. Prometo voltar em breves dias com as coisas bonitas do meu Lado B.
Bem hajam por estarem aqui comigo. Desejo-vos a continuação de uma excelente semana ❤



Até já!
Ana Lado B



2 comentários

  1. Olá Ana, sei bem o que isso é, a acumulação. Felizmente nunca tive ninguém da família com esse problema, mas na área em que trabalho, nos apartamentos antigos, vários já foram entregues (depois do inquilino, de renda antiga, falecer) com tudo e mais alguma coisa lá dentro. Ou seja, quem lá vivia sofria da doença, as famílias nunca conseguiram controlar e quando a pessoa desaparece, apenas entregam as chaves da casa sem tirar nada de lá. Portanto, eu e os meus colegas , quando entramos nessas casas levamos com o choque do impacto. Tudo ao monte, sem espaço por onde andar, sem falar na falta de higiene. Uma tristeza! Geralmente separamos as roupas e sapatos, como tu dizes, nunca usados e ainda com etiqueta das lojas, para doação, mas tudo o resto é para o contentor de obra que vai! É preciso muita coragem e disponibilidade da tua parte para conseguires arrumar essa casa e devolver alguma dignidade de vida a essa pessoa. É uma doença, que como dizes, vemos nos programas americanos na TV mas muitas vezes não nos damos conta que existe ao nosso lado. É difícil de detetar também, já que essas pessoas não permitem que ninguém lhes entre em casa. Oxalá tenhas sucesso e essa pessoa consiga controlar os seus impulsos! Beijinho, Val.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Penso muita vez se conseguirei arrumar tudo aquilo! É um tipo de tarefa que não dá para grandes planos, apenas se vai fazendo. O mais difícil de tudo é mesmo encontrarmos sítios para doação das roupas, todos dizem já ter em demasia, refiro-me a associações de entre-ajuda ou de caridade. Temos optado por colocar as roupas nos contentores de "roupa para reciclar" e em relação às loiças nem sabemos o que fazer...tenho tanta pena que por cá não haja o hábito das vendas de garagem ou de jardim, seria bem mais simples. Tenho esperança que a pessoa ao voltar à sua casa, vendo-a arrumada, limpa e organizada se sinta em conforto e consiga manter. De qualquer forma, terá de fazer uma grande terapia, pois todo o problema resulta de uma depressão profunda. Enfim, tenho ali uma questão bem complicada para ajudar a resolver.

      Eliminar

Obrigada pelas palavras!
Thank you for your words!